Luto e IA: o dilema da “ressurreição digital”.

A dor é uma experiência humana universal que todos nós iremos enfrentar em algum momento de nossas vidas. Seja pela perda de um parente, amigo ou animal de estimação, a reação de cada ser humano à dor é pessoal e individual. Mas, se pudéssemos conversar com um ente querido que já morreu novamente? A inteligência artificial já tem proporcionado a recriação de diálogos e interações entre parentes e entes que já se foram há algum tempo; contudo, isso tem causado um grande debate ético.

Diferentes projetos estão sendo dedicados atualmente aos chamados griefbots ou deathbots, que são chatbots baseados na pegada digital deixada pelo falecido por meio de mídias sociais, e-mails, mensagens de texto e sistemas de mensagens, com o objetivo de dar aos enlutados a chance de falar com seus entes queridos após sua morte. O surgimento dos griefbots levanta vários dilemas éticos, incluindo a negociação do consentimento: o falecido concordou com isso antes de morrer? Sua família e amigos aprovam? Os griefbots também levantam questões relacionadas à criação de uma vida digital após a morte e à comercialização dos dados do falecido. Se não forem respondidas antes da morte de um indivíduo, essas perguntas, junto com outras relacionadas à privacidade, gestão de dados e identidade, podem se tornar contenciosas.

Os griefbots se juntam a muitos outros dispositivos online que os humanos usam para homenagear a morte de indivíduos. Por exemplo, redes sociais como o Facebook podem se tornar memoriais online quando um usuário ativo falece, alterando seu perfil de um que foi projetado para interações sociais para outro destinado à lembrança. Contudo, os griefbots são diferentes, porque os dados coletados dos dispositivos e perfis pessoais do falecido são usados para construir uma entidade online que tem a capacidade de continuar “comunicando-se” com os vivos por meio de conexões recíprocas. Ou seja, o ente querido passará a ter cada vez mais novos conteúdos alimentados pelas interações dos amigos e parentes que “conversarem” com ele.

Já não é de hoje que as redes sociais permitiram que as pessoas acessassem as vidas de outras, inclusive após o falecimento de alguém. Sites de memoriais online criam um senso de comunidade, onde amigos e familiares do falecido podem se reunir para postar lembranças, mas não há interações entre os usuários e os remanescentes digitais do falecido. Já os griefbots podem responder a perguntas em tempo real de um familiar, por exemplo, criando uma “entidade online” que mantém vínculos contínuos com todos que quiserem interagir, podendo, segundo os críticos, dificultar o fechamento das etapas do luto. Paralelamente ao crescimento dessas tecnologias alimentadas por IA, um número crescente de estudos está se concentrando em suas possíveis implicações éticas e psicológicas.

Outro ponto a ser discutido é a sobreposição de memórias. Sabemos que a memória humana sempre foi falível; embora normalmente nos lembremos da essência de um evento, os detalhes são esquecidos ou distorcidos. Com o advento dos griefbots, por mais que os modelos estejam sendo aprimorados, existe o risco de a inteligência artificial generativa criar diálogos, opiniões, conselhos e memórias de uma entidade digital que não representem o perfil real daquela pessoa em vida, adulterando ou sobrepondo memórias reais de quem conviveu com ela.

Paralelamente a isso, existe uma indústria ávida por novas possibilidades, desde a oferta de um serviço funerário com direito a diálogo de despedida no próprio velório até o discurso em uma formatura de um filho na fase adulta. É um pouco assustador, confesso, mas precisamos discutir o uso de acordo com a ética. Sabemos que a morte é uma parte inevitável da vida, e como passamos grande parte de nossas vidas online, é possível que nossas mortes também eventualmente se transfiram para os espaços online.

A possibilidade de “reviver” digitalmente entes queridos por meio de griefbots, avatares e outras tecnologias de inteligência artificial abre um novo e complexo campo de debate sobre as fronteiras entre vida e morte. Embora algumas pessoas vejam nessas ferramentas um alívio para a dor do luto, oferecendo a chance de manter conversas simbólicas com quem já partiu, outros apontam riscos psicológicos e éticos, como a dificuldade de aceitar a perda e o prolongamento do sofrimento emocional. Além disso, a precisão e a fidelidade dos conteúdos gerados pela IA podem não corresponder à personalidade real do falecido, criando memórias artificiais que podem confundir ou até ferir os enlutados.

A indústria da vida após a morte digital pode afetar tanto os falecidos quanto os parentes vivos que eles deixam para trás. Os griefbots podem ajudar os enlutados a seguir em frente com seu luto, mas também podem infringir o consentimento do falecido. Quem é “digno” da preservação digital? Será que o dinheiro ou a notoriedade determinarão quem terá a honra de se tornar imortal? A ética desempenha um papel importante nos direitos civis e à medida que a tecnologia continua a crescer em nossas vidas, devemos pensar sobre nosso papel dentro da indústria da morte digital e como iremos “viver” na internet. Assim, discutir a ressurreição digital à luz da ética, da psicologia e da legislação é fundamental para garantir que a tecnologia sirva ao bem-estar humano sem comprometer valores essenciais como dignidade, respeito e autenticidade.

Referências:

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